O colonialismo ocidental influenciou, a partir do século XIX, o encontro entre saberes tradicional e moderno, resultando na sobreposição da medicina ocidental como modo privilegiado de conhecimento. Em 1958 oficializou-se, sob o nome de medicina tradicional chinesa, a hibridização entre as medicinas chinesa e ocidental e, por meio do desenvolvimento da pesquisa biomédica sobre a acupuntura, cresceu o distanciamento do saber tradicional. Este ensaio aborda mudanças históricas sofridas pela medicina chinesa/acupuntura e discute, sob a óptica pós-colonial, os efeitos de sua absorção pela racionalidade médica moderna. Concluiu-se que o cientificismo na medicina chinesa não ampliou seu potencial terapêutico e resultou na perda de sua autoridade epistemológica.
Embora a população da China reconhecesse socialmente a medicina clássica chinesa1 como prática de atenção à saúde, a ação colonialista ocidental na China favoreceu, no século XIX e início do século XX, perante a classe política chinesa, a sua gradual desqualificação cultural, teórica e prática.2 Em um primeiro momento, o saber médico tradicional não foi alvo das reformas implantadas a partir do final do século XIX, pelo governo Qing, que visava modernizar as instituições e garantir a soberania nacional, com a inserção do ensino de conhecimentos da ciência ocidental.
A medicina chinesa era o único campo que muitos intelectuais consideravam igual, senão superior, à sua contraparte ocidental. Porém, uma epidemia de pneumonia ocorrida em 1910 na Manchúria foi determinante para o governo imperial adotar modelos ocidentais de saúde pública, o que favoreceu a desvalorização na esfera política dos conhecimentos tradicionais de cuidado com a saúde (Lei, 2014).
A partir de 1912, com o governo nacionalista, a medicina chinesa sofreu grande pressão, com sucessivas tentativas de desmonte, o que influenciou seus praticantes a fazer adaptações de sua lógica de cuidado em direção ao pensamento médico ocidental (Andrews, 2014; Lei, 2014). Isso ocorreu com maior ênfase pela sistematização iniciada em 1949-1950 no governo de Mao Tsé Tung, em que se oficializou a hibridização entre o saber médico chinês e a medicina científica ocidental (Unschuld, 1985; Fruehauf, 1999). Sua forma assemelhou-se à objetividade moderna, imprimindo uma descrição materialista/concreta e racionalista de conceitos/noções autóctones da medicina clássica chinesa sobre o organismo e sua vitalidade, além de descartar noções introspectivas de como cada indivíduo pode autonomamente acessar seu potencial de saúde. Essa influência cresceu após a compreensão científica de alguns dos mecanismos terapêuticos da acupuntura e persiste com as tentativas de adaptar sua prática a um formato que possibilite sua validação pelo modelo de pesquisa biomédica.
O objetivo deste texto é continuar e aprofundar a discussão já existente sobre a mudança na base teórica da medicina chinesa, focando a influência do encontro com a medicina ocidental na sua prática e como isso se reflete na padronização desse conhecimento produzido na China e disseminado no mundo todo. Para tanto, apresentam-se apontamentos históricos do processo de transformação da medicina clássica chinesa para sua vertente moderna, conhecida como medicina tradicional chinesa (MTC).
Foram utilizadas fontes secundárias para o estudo dos processos históricos, a partir das quais se discute como a hibridização com a medicina ocidental resultou na perda da autoridade epistemológica da medicina chinesa (Andrews, 2014) e na interferência negativa na efetividade de sua prática (Jacques, 2005). As modificações sofridas descaracterizaram sua forma original de compreensão do processo saúde-doença-cuidado, aproximando-o da lógica biomédica, o que resultou em tentativas vãs de validá-la com métodos inapropriados (Souza, Luz, 2011; Contatore et al., 2015) e na falácia do discurso de integração e complementaridade entre medicinas, quando há, continuamente, a sobreposição do saber médico ocidental (Gale, 2014).
Fonte: Scimago Institutions Rankings.